Antes dele, ela existia. Existia diferente, existia mais doce.
Ele foi embora há tanto tempo que seu rosto já não tinha mais formato, sua voz
não lembrava mais nenhum som e sua verdade já não fazia parte nenhuma da vida
dela. Ela se libertou daquilo tudo, daquele passado, se libertou dele. Depois
de anos, depois de tanta coisa errada que deixou que ele fizesse com ela. Mas
mesmo assim, mesmo sendo póstumo, mesmo sendo indolor há tanto tempo, mesmo
sendo, inclusive, extremamente desimportante agora, o coração dela mudou
inteiro por dentro, ficou mais escuro, mais amargo e mais sujo por conta da
falta de amor que ela sentiu por todos os anos que precisava ter sido amada por
ele.
No fundo ela sabia que, à essa altura, já não era nem mais justo
colocar toda a culpa nele. Os anos passaram e a memória dele sumiu, o que
sobrou foi o fantasma que agora vive dentro dela, o fantasma que se alimenta
das suas inseguranças plantadas e faz com que ela guarde com todos os dedos, e
unhas e venenos seus sentimentos pra que ninguém possa mais uma vez usá-los contra
ela. Os resquícios ficaram não porque ele ainda fazia parte dela, eles estavam
ali porque, é verdade, ela mudou pra sempre.
E toda vez que ela tentava se lembrar de como era enxergar o
mundo com olhos mais infantis – aqueles que esperam tudo do mundo, tudo das
coisas, tudo de qualquer pessoa porque, de verdade, acreditam no bem – ela já
não conseguia; era impossível não jogar a culpa diretamente pra ele, o grande
monstro dentro do seu armário chamado passado, impossível não torcer o seu nome
dentro da boca, porque tinha jurado nunca mais o repetir, prometido a si mesma
que nunca mais daria a ele o prazer de fazer parte da vida dela, dos seus
pensamentos, do seu amor e nem da sua raiva. A única grande certeza é que dela
ele já não merecia mais nada, nunca.
Todo dia então ela olhava seu rosto mais velho no espelho.
Examinava cada linha, cada traço, cada resquício de familiaridade, de
lembrança, de reconciliação do seu gesto com seu sentir. Fisicamente quase nada
mudou de lá pra cá, sua genética tinha sempre sido delicada com ela, desde
pequena, e os anos iam se empilhando levemente em seu rosto que ainda tinha,
fisicamente, a capacidade de se contorcer à cada emoção. Mas quando ela olhava
fundo, se sentia como se não houvesse ninguém em casa, parecia que, há tempos,
tivesse fugido de si mesma e na frente daquele espelho só ficou a carcaça,
aquele corpo vazio que imita uma vida que um dia ela tinha sonhado ter.
Amores vieram depois dele, mas ela nunca conseguiu senti-los.
Não de verdade, não como se deve.
Toda vez que ela tinha um pesadelo era o rosto dele, roubando
dela tudo o que ela sempre supôs ser seu. E a cada relacionamento que ela
começava, tentando cantar o mantra de mentiras em sua cabeça de que, dessa vez
daria certo, outra parte do seu coração apodrecia, virava enxofre, fedia.
Ela passou tantos anos de sua vida colocando todas as forças do
seu amor num amor errado, tantos anos desejando ser amada como ela amava, ser
completa junto, entendida, paparicada, desafiada, desafinada, enlouquecida,
preenchida e louca de amor, de tesão, de paixão. Mas a paixão que ela viveu,
aquele amor que hoje ela conta como sendo o divisor de águas da sua vida
emocional, só aconteceu na cabeça dela. E agora quando ela tenta fingir
acreditar que está se dando outra chance, ela sabe bem lá no fundo, que toda
vez que ela entra agora, ela já entra carregando a derrota, ela passou a se
sentir tão mal por si mesma que, antes de tentar acreditar, ela já desistiu.
Ele poderia ser qualquer um. Na verdade, ele foi mesmo qualquer
um, um amor barato, bandido, esquecido na quinquilharia que vira aquele espaço
do cérebro onde ex namorados, ex amigos e ex chefes se misturam nas mesmas
gavetas, empoeirados. O problema dela era guardar tudo, guardar por tanto
tempo. O problema era analisar com a lupa tentando achar a solução de um
problema que na verdade eram muitos e a resposta era simples.
E ainda que ela encontrasse um amor que desse a ela todas as
coisas com as quais ela sempre sonhou, sua vida seria triste. Não porque aquele
cara, o mané, não soube a amar direito, mas porque não merece felicidade quem
dá de presente a outra pessoa a sua habilidade de se fazer feliz. Ela achava
que ela só existia antes dele, mas o que existiu antes, de verdade, foi um
grande vazio que precisava ser ocupado por alguém para levar a culpa por ela
nunca ter conseguido se amar, se aceitar, se moldar em qualquer formato que ela
decidisse precisar ser.
E um dia quem sabe o amor poderia sim ser o líquido que
preencheria tudo, mas só quando a jorrada viesse de dentro dela.
( Rani ghazzaoui )
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