Tudo no mundo muda. O tempo todo, mesmo quando cismamos em viver
aquela ilusão que aquece o coração por um tempo (não por muito, mas aquece), de
que a vida finalmente parou no “futuro”, naquele momento bom que tanto
desejamos chegar, conseguir, conquistar; o futuro justifica todas as dores
e desamores do presente, mas a verdade é que o futuro não existe, só o que
existe no mundo – como conseguimos conhecê-lo – é o agora. O futuro não
importa.
Eu me casei com uma pessoa completamente diferente de mim.
Ele acredita na vida, na felicidade e , pasmem, até no ser humano. Não vou
mentir, é exaustivo fingir que eu me preocupo tanto com a tranquilidade, e com
a normalidade, e com toda a formalidade do mundo quanto ele, ou o quanto ele
gostaria que eu me preocupasse. Ele me disse outro dia: “Ser como você é,
é estar em guerra com o mundo e com si mesmo constantemente”. E, embora eu
saiba que o comentário, pra ele, foi negativo, pra mim foi um adjetivo
positivo. Adjetive-me de mutação e eu vou gritar o hino de Raul como se
não houvesse amanhã, inclusive, porque como já disse antes, o amanhã não
existe.
Se estou cansada? Sim, sempre. Uma cabeça barulhenta tira da
vida de uma pessoa muitas coisas que eu acredito serem importantes. Gente
conformada ou conformista nunca sofre de ansiedade. Ansiedade é a doença
dos criativos, dos desinibidos, dos causadores de causo, dos loucos. Mas
acontece que há anos eu desisti de buscar sanidade porque, pra mim, linearidade
é tão apetitosa quanto um sanduíche de cocô. Equilíbrio ajuda a respirar, mas
não enxergar o barulho à sua volta faz com que a sua existência como ser
pensante seja diminuída à quase nada. E se era pra ser árvore, pra que então
estou aqui lidando com gente que não sabe a diferença entre religião e
alienação? De opinião e de imposição? De homossexualidade e escolha? De guerra
e de realidade? Pra que, meu Deus, se nasci pra ser planta e fazer
fotossíntese, estou eu aqui, correndo na esteira dessa vida pra queimar a única
coisa que realmente é prazeroza nesse cazzo (chocolate, claro), e passando
cremes caros nas rugas que tentamos esconder porque a nossa sociedade acha
sabedoria desimportante, mas se sua bunda for dura com cinquenta
anos você venceu na vida?
Se estou cansada? É claro que estou cansada, porra, viver no
meio de gente alienada, tapada, chata e que passa a vida planejando o
casamento perfeito e a casa de cerquinhas brancas com o namoradinho de
colégio é mais boçalidade do que o meu cérebro concordou em aguentar pra viver
em sociedade. E a nossa, eu te conto, tá falida.
Às vezes a ansiedade não te deixa respirar direito, ou comer
direito, ou dormir direito, ou transar direito ou ser você direito, e são
nessas horas que eu gostaria do fundo da minha alma escura conseguir sentar a
minha bunda cansada no meu tapetinho de yoga e meditar por cinco
minutos que fossem. Meditar é privilégio de quem descobriu onde apertar o botão
do foda-se até o fundo, e o meu emperra no meio, sempre tem alguma coisa
que me fode antes de eu conseguir ligar o foda-se pra ela primeiro.
Eu, que nasci escandalosa e eloquente, eu, que fui sempre
a criança que achava idiota conversar com outras crianças, eu, que era
a adolescente que achava que beber era idiota e querer ficar loucão
era idiota e querer ser igual à todos os seus amigos para ser popular era
idiota, eu, que não entendo gente que só funciona em grupos,
essa disformidade que é se justificar como indivíduo somente quando
há um coletivo que te explique, eu, sozinha, me vejo colocada nessa prisão
moral que é viver num país que parou no tempo. E toda manhã enquanto eu
tomo meu café, tenho que ver fotos grotescas de uma realeza ativa em pleno
século 21 estampadas no meu jornal. A plebe assiste encantada e muda, as bocas
cheias de salsicha, e bacon, e conformidade. Eu não quero me conformar, porque
no dia em que eu acreditar que isso é tudo, que a vida é isso aqui, que não tem
mais nada pra contestar, pra reclamar, pra discordar, nesse dia cinza com
nuvens britânicas, nesse dia frio com ventos do mar do Norte, nesse dia chato
com humor amargo de quem nasceu na terra que a natureza abençoou com o seu dia
de prisão de ventre, esse vai ser o exato dia em que vocês poderão
anunciar, eu morri.
Tudo no mundo muda, eu disse lá no começo. O problema não é o
mundo, porque ele gira, e na natureza, na bioenergia, na filosofia e
no espiritualismo tudo está em constante mudança. Nada fica estático. A
porra do problema é a antropologia. É o ser humano que só consegue aguentar
essa vida de incertezas quando finge que está no controle, que tem um plano, que
sabe o que está fazendo. A gente não sabe de nada, nem da metade do nada a
gente sabe.
Eu que nasci com preguiça de todo mundo, percebo que a cada ano
que passa só fica pior. Vocês, seres humanos enquadrados, não me
convém, não me apelam, não me entretém. A vida tá tão chata que até pra
amar outra pessoa tem burocracia: se vocês partilham do mesmo tipo de genitália
então, afe.
Tô com preguiça. Tô sem saco. Queria menos extremismos e
mais eloqüência. Queria menos casamentos por comodidade e mais crianças
sendo educadas pra pensarem por si mesmas. Queria mais Hilda Hilst e menos
Paulo Coelho. Queria meditar, mas não consegui e vim aqui escrever este texto
cheio de inconformidade. Queria poder ter nascido com o direito de viver
pelo simples fato de, mas nasci num mundo capitalista que nos
faz escravos do dinheiro até quando já somos muito velhos pra
aproveitar qualquer coisa dessa vida.
Queria que fosse Sexta mais ainda é Quinta e eu tenho que voltar
a trabalhar.
( Rani Ghazzaoui )